Imagem: Warner Bros

O Superman é (e precisa ser) punk rock

Há um diálogo muito bom entre a Lois Lane e o Superman no final do primeiro ato do novo filme que traduz perfeitamente a visão que o diretor James Gunn tem do personagem e da sua importância enquanto ícone – e como ele transporta tudo isso para o longa. Após uma discussão de casal, a jornalista pontua as diferenças entre eles, dizendo ser uma garota punk rock que desconfia e questiona a tudo e a todos, enquanto ele é alguém que vê o melhor das pessoas sempre – e o kryptoniano responde apenas: “Talvez isso também seja punk rock”.

A conversa pode passar despercebida por muita gente ou até ser encarada como uma das piadinhas de Gunn, mas ela ecoa uma questão central em que Superman está inserido desde que o longa foi anunciado no início de 2023: esse herói solar, bondoso e até ingênuo ainda tem espaço em um mundo cada vez mais cínico como o nosso?

Esse questionamento não é novo, mas ganhou muita força ao longo dos últimos anos entre o público, autores e até executivos da Warner/DC. A ideia de que o herói é poderoso e bobinho demais atingiu os quadrinhos, as animações, os games e, é claro, o cinema. Mas, embora eu nunca perca a oportunidade de xingar o Zack Snyder e sua visão equivocada do personagem, a verdade é que essa percepção não é culpa unicamente sua. Basta olhar o fenômeno Injustice, por exemplo, e como as paródias do herói, como Capitão Pátria (The Boys) e o Omni-man (Invencível), caíram no gosto popular.

Ainda assim, é claro que o Visionário tem uma enorme parcela de culpa. Mesmo que essa ideia de que o Superman moderno precisa ser badass já estivesse circulando por aí, Snyder captou esse zeitgeist completamente errado e consolidou essa abordagem mais sombria do Superman tanto em Homem de Aço quanto em Batman vs Superman: A Origem da Justiça e nas duas versões de Liga da Justiça – e o estrago foi enorme. Basta ver a legião de fãs que, ainda hoje, dizem que aquela versão do Escoteirão, que quebra pescoços e não se importa com civis em meio a uma batalha, é a correta. Afinal, massavéio.

Perdão trazer de volta esse Superman endeusado e desconectado da humanidade (Imagem: Warner Bros)

Só que, na verdade, o problema do Superman do Snyder vai além dessas decisões ruins de roteiro ou por ele não entender o personagem. A verdade é que ele próprio é fruto desse mundo mais cínico que não vê razão em um Superman colorido, amigo das crianças e que pisca para o leitor no último quadro. 

Em seus filmes, Snyder deixa bem claro sua visão objetivista do mundo que encara o individualismo como um valor fundamental. A filosofia criada pela autora Ayn Rand valoriza justamente a lógica racional e dados objetivos e analíticos ao invés de uma maior subjetividade. Assim, para ela, ações que dependem dessa consciência mais emotiva têm menos valor – e, portanto, sem espaço para o altruísmo.

Isso é bem claro em todo o Snyderverso. O Jonathan Kent que diz que o jovem Clark deveria deixar crianças morrerem para manter seu segredo é uma aplicação escancarada desse individualismo objetivista. Em BvS, Martha Kent diz a Clark que talvez as pessoas da Terra não mereçam o Superman. É o puro suco de Ayn Rand e a prova de que Snyder não entende nada do personagem – e também nada de religião, já que ele faz referências ao cristianismo que não combinam em nada com esses discursos.

Amar é um ato revolucionário 

Mas chega de revirar no lixo e vamos falar de coisa boa: Superman! Em seu novo filme, James Gunn faz questão de se distanciar ao máximo dessas ideias erradas. Em muitos momentos inclusive, deixa bem claro que a sua visão para o herói é diametralmente oposta. Para ele, o que torna o personagem um super-homem não é a força que o desconecta da humanidade, mas justamente essa capacidade de se conectar ao outro de forma inquestionável – e até ingênua, como aponta Lois.

Agora temos um Superman que salva esquilo e chora por robô (Imagem: Warner Bros)

Isso fica claro em vários momentos, seja quando intervém em uma guerra do outro lado do mundo para impedir um massacre, ou quando chora por um robô que diz não ter sentimentos ou emoções. Para ele, toda vida é igualmente importante, seja de um autômato, de um esquilo ou de um monstro que está destruindo a cidade. 

Quando Gunn anunciou o novo Universo Cinematográfico da DC, ele fez questão de destacar que o novo filme do Azulão – que ainda se chamava Superman Legacy – seria justamente sobre a importância desse personagem e de tudo o que ele simboliza para os dias de hoje. E, agora que o longa chegou aos cinemas, vemos realmente o quanto essa abordagem solar e espirituosa do herói é punk rock.

Mais do que uma piadinha, a fala é muito poderosa. Ela deixa claro como, em um mundo sombrio e cínico como o nosso, o Superman é essa figura que contraria a todos por colocar o outro em primeiro lugar sem importar com as consequências que isso trará para si. É ao se preocupar com o outro que ele questiona o mundo à sua volta. “O amor é um ato revolucionário”, já diria Chico César.

O verdadeiro poder do Superman é inspirar o mundo à sua volta e James Gunn foi preciso demais nisso (Imagem: Warner Bros)

De nada adianta repetir incansavelmente que o herói representa esperança e rodeá-lo de referências cristãs quando, na prática, ele não carrega nada disso. Seu verdadeiro poder, o que o torna super de verdade, é a capacidade de inspirar àqueles à sua volta, do vendedor de falafel a heróis burocráticos com cabelinho de prepúcio. 

A esperança que o S representa é justamente a de que podemos ser melhores. De que o altruísmo vale a pena e que é preciso se importar com o bem-estar de todos. Se Snyder pavoneava ícones cristãos vazios, a nova encarnação do Homem de Aço representa uma passagem bíblica sem citá-la uma única vez: “Nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos. Cada um de nós deve agradar ao seu próximo para o bem dele, a fim de edificá-lo”.

O Superman que James Gunn traz às telas é tudo isso. É um herói que questiona e se opõe a esse olhar individualista pelo exemplo – exemplo este que ele traz de casa. Um herói que inspira por ter sido inspirado antes. Um Superman punk rock da mamãe e do papai.