Durante muitos anos, sempre quando se falava em Coringa, a primeira coisa que vinha na minha mente era um trechinho da lendária redublagem Feira da Fruta, com o vilão, interpretado por Cesar Romero e seu bigode pintado, falava “Eu sou um bobo, sou um palhaço. Sou o Jóquer, um palhaço”. Desde então, eu via o Coringa e “Um bobo” vinha na cabeça. Depois de duas horas e 20 minutos de filme, Coringa: Delírio a Dois me fez pensar novamente que o Coringa nada mais é do que um bobo.
O filme de 2019, dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, recebeu várias críticas por conta da sua violência, de basicamente criar um personagem bastante problemático em algo que uma parcela do público poderia admirar (e assim o fez), além de algumas escolhas um tanto quanto estranhas.
Mesmo assim, ainda considero o primeiro Coringa um bom filme dentro de um vácuo, desconsiderando o fato de ser uma chupinhada sem igual de O Rei da Comédia, de Martin Scorsese, e da vergonha descarada do material que originou tudo. Basicamente ter um filme do Coringa sem o Batman é algo que não me desce muito bem, mas a história de Arthur Fleck ainda parecia interessante o suficiente, assim como a conclusão com ele de fato abraçando a sua persona de vilão em meio a uma Gotham envolvida no caos.
Com mais de 1 bilhão nas bilheterias globais, não era absurdo pensar que o diretor e o astro, que levou um Oscar de Melhor Ator pelo papel, poderiam voltar pra esse universo. Quando Coringa 2, ou Coringa: Delírio a Dois, foi anunciado, dando a deixa para a introdução de Harleen Quinzel, a Arlequina, as coisas ficaram mais interessantes. A confirmação que ela seria interpretada pela Lady Gaga foi ainda mais empolgante, mas junto, a ideia de que o filme poderia ser um musical.
É o tipo de ideia que pode dar muito certo ou muito errado. Perto do lançamento do filme, o diretor Todd Phillips tentou tirar o corpo fora, falando que o filme não é um musical.
Duas horas e 20 minutos de filme depois, posso falar que não só Coringa: Delírio a Dois é um musical SIM, como é musical pra cacete. E isso não tá nem perto de ser o problema do filme.
Um homem perdido em sua própria mente
Coringa: Delírio a Dois começa dois anos após os acontecimentos do primeiro filme, com Arthur Fleck preso em Arkham. Ele virou uma espécie de celebridade após ter matado o apresentador de talk show Murray Franklin, além de ter assassinado mais três caras num metrô.
Ele aguarda julgamento, enquanto sua advogada tenta convencer as autoridades de que Arthur tem, na verdade, dupla personalidade, causada por anos de abuso. Logo no começo do filme, essa possibilidade é descartada por médicos, o que fazem com que Arthur de fato vá a julgamento, com o promotor Harvey Dent pedindo a pena de morte para ele.
Logo nesse começo de filme, Coringa 2 deixa muito claro uma tentativa de humanizar novamente Arthur Fleck, transformando a figura do Coringa como algo que não é ele de verdade, mas sim uma espécie de “sombra” que toma conta dele em momentos específicos.
A ideia não é de toda ruim, mas elimina boa parte da força que o vilão tem como personagem em qualquer história. Existe sim uma forma de mostrar que um dos maiores monstros da cultura pop do século 20 tem um fio de humanidade por baixo de todas as atrocidades que é capaz de cometer, sem perder a essência de que ele é mau de verdade.
O filme tenta mostrar Arthur ainda mais frágil quando ele conhece Lee, interpretada pela Lady Gaga. Ela está internada na ala de segurança mínima de Arkham, participando de um projeto que usa música para tentar reabilitar detentos. Um dos guardas acaba inscrevendo Arthur quando vê o interesse dele na moça e é aí que o filme começa de verdade.
Isso porque, ao ter contato com Lee e música, boa parte do filme tem os pensamentos de Arthur em forma de números musicais. Alguns deles funcionam (um em particular, mais pro final, me agradou bastante), mas outros são apenas ok.
Só que a história de “Não é um musical” é papinho, é musical pra caramba.
Fascinação e doideira
Lee se mostra fascinada pela figura do Coringa, se aproximando de Arthur, que logo se vê apaixonado por ela. A mulher parece despertar em Arthur algo que ele nunca pode viver, que é um amor correspondido, além de trazer de volta à tona a figura do Coringa, suprimida por remédios que ele precisa tomar diariamente.
Confesso que, quando a história começou a seguir esse caminho, consegui ver como as coisas poderiam se desenvolver e fiquei intrigado com a ideia. Porém, o próprio filme faz questão de sempre mostrar Arthur como um fraco, uma pessoa facilmente manipulável e que não faz ideia do que fazer.
Todo o circo em torno do seu julgamento é um tanto ridículo, já que todas as acusações contra Arthur são claras e indefensáveis (ele meteu uma bala na cara de um apresentador, ao vivo na TV), então a tentativa de suspense sobre o que poderia acontecer não existe.
O filme então começa a ir para o lado da fascinação de Lee pelo Coringa e como, aos poucos, ela vem tentando assumir um papel de protagonismo em todo o circo. Isso é retratado até mesmo em um número musical que mostra, muito superficialmente, o problemático relacionamento entre Coringa e Arlequina nos quadrinhos, filmes e animações.
Por mais que a presença de Lady Gaga no filme seja magnética, pode se dizer que ela é mal utilizada, já que sua personagem tem muito mais a oferecer do que é mostrado na tela.
O centro das atenções ainda é Arthur, mas não aquele que todos viram no final do primeiro filme. O que temos na tela é um cara fraco, que não sabe direito se tudo o que aconteceu é de fato um fragmento de sua mente ou se era ele mesmo, pintando o rosto e tocando o terror.
Isso vai até um número musical (aquele que mais me agradou) em que me fez pensar “AGORA VAI”, apenas para o filme seguir para um terceiro ato extremamente fraco e anti-climático.
Coringa: Delírio a Dois traz excelentes atuações por parte de Joaquin Phoenix e Lady Gaga, mas fiquei com a impressão de que eles estão muito acima da direção de Todd Phillips ou do roteiro que tinham em mãos.
No final do filme, fica uma sensação de que a sequência foi produzida apenas pelo simples fato de que eles podiam (e porque o primeiro rendeu demais), não porque tinham algo a mais para falar sobre o personagem do Coringa.
Parece que aquele primeiro filme foi um golpe de sorte e, com essa sequência vazia, chega a deixá-lo mais fraco em retrospecto.
E o final desse aqui é bem pior que o do primeiro.