Somos todos um pouco de Demolidor

Por Durval Ramos

Faltando menos de uma semana para a estreia da série do Demolidor na Netflix, o entusiasmo em torno do personagem cresce pela internet. Afinal, é o tão esperado retorno do herói ao universo cinematográfico da Marvel e qualquer pessoa com o mínimo de contato com histórias em quadrinhos está curioso para ver esta segunda chance dada ao Homem Sem Medo.

É curioso ver esse súbito aumento de interesse pelo personagem, ainda mais quando ele nunca figurou momentos de grande protagonismo nas HQs. Por mais que algumas de suas histórias sejam realmente muito boas, ele está longe de ser um dos medalhões da editora, sendo sempre deixado em segundo plano nas grandes sagas.

E um dos principais motivos para isso é o fato de ele ser um herói mais urbano que os demais mascarados. Enquanto Homem de Ferro e o Quarteto Fantástico estão constantemente lidando com uma invasão Skrull, um ataque do Galactus ou qualquer outra ameaça global, o Demolidor segue preocupado em manter seu bairro em paz. E é exatamente esse foco na Cozinha do Inferno que o torna tão interessante.

Gente como a gente

Não é segredo para ninguém que o Demolidor é meu personagem favorito nos quadrinhos e parte disso está nesse fato de ele ser alguém muito mais voltado a problemas locais. Ele lida com questões mundanas e é o que o torna tão próximo de nós.

A principal característica que mede a “força” de um herói nas HQs é o quanto ele é capaz de fazer o público se identificar. É por isso, por exemplo, que o Homem-Aranha é tão popular: ele cria um laço com o leitor, que se vê nele de alguma forma, seja se reconhecendo no deslocado Peter Parker ou se projetando na figura do Cabeça de Teia. Afinal, quem não gostaria de ser tão habilidoso, divertido e carismático assim?

Só que ninguém termina uma história do Demolidor querendo ser como ele. Não há aquela catarse ou sentimento de inspiração. Isso porque Matt Murdock é um pouco de cada um de nós: alguém que se fode constantemente tanto na vida como vigilante quanto no seu lado “civil”.

Não é à toa que, por um bom tempo, suas HQs foram bem pesadas com ele sendo sempre aquele cara amargurado. E, embora a entrada Mark Waid nos roteiros mais recentes tenha diminuído esse pessimismo, ele continua sendo o infeliz que acorda todos os dias para quebrar a cara, seja com a imprensa estampando sua identidade na capa do jornal ou com o Rei do Crime fazendo da sua vida um inferno.

E é exatamente essa combinação que faz do Demolidor um dos heróis mais humanos dos quadrinhos — ou, pelo menos, o meu favorito. Por mais que seja sempre legal ver o Aranha ser engraçadão ou os Vingadores salvarem o dia com um murro, é com o derrotismo do Homem Sem Medo que eu me identifico.

Como eu falei, quase não há nenhuma HQ do personagem na qual você queira ser como ele. O que acontece é exatamente o oposto: a cada página, você se vê ali, principalmente quando os problemas do herói são tão semelhantes aos seus.

É aí que se encaixa o lado inspirador do que é ser um herói. Por mais que ele seja tão fodido quanto qualquer um de nós, ele ainda consegue deixar tudo isso de lado para dar suas piruetas e socar alguns bandidos nas ruas. Não tem nada a ver com ele superar sua deficiência, mas aguentar todas as porradas que já levou da vida e ainda estar ali vestindo o uniforme todos os dias para quebrar a cara mais uma vez.

Demolidor
O Atrevido sofre (Imagem: Marvel Comics)

Se você se lembrou do discurso do Stallone em Rocky Balboa, não foi por acaso. Esse paralelo com o boxe é muito importante não apenas pela fala motivacional do Stallas, mas porque o próprio pai do Murdock era um lutador e ele sempre faz essa comparação entre as pancadas que o velho levou nos ringues e aqueles que ele recebe todos os dias dessa cadela que a gente chama de vida.

Não era amor, era cilada

Assim como já aconteceu com quase todo marmanjo, um dos pontos que torna o Demolidor assustadoramente humano é o quanto ele já se fodeu por causa de mulher.

Não me entenda errado. Não quero dizer que elas são sinônimo de problema ou qualquer coisa parecida. No entanto, praticamente todo homem já quebrou a cara pelo menos uma vez na vida por causa de uma namorada ou mesmo de um caso. Trocou os pés pelas mãos e faz uma cagada fenomenal ou se deixou levar, não importa. A verdade é que, como muitos de nós, Matt Murdock não leva muita sorte em relacionamentos.

Demolidor e Elektra
Demolidor é um cara bem legal (Imagem: Marvel Comics)

Vejamos o seu histórico: ele já se apaixonou por um ninja assassina que queria matá-lo, uma louca com múltiplas personalidades e a ex-namorada mais normal que ele já teve era uma espiã russa que ninguém dentro do Universo Marvel consegue confiar. Não é à toa que ele volta e meia aparece se lamentando por causa de mulher em alguma história ou tentando voltar com alguma ex para, no fim das contas, se arrepender. Ele é tão burro que às vezes acho que sou eu embaixo daquela máscara.

Tanto que uma de suas histórias mais icônicas acontece exatamente por problemas causados por conta de um antigo namoro. Embora todo mundo se lembre de Elektra, a namorada mais marcante do Demolidor é Karen Page, que simplesmente destruiu a vida do Demônio no arco A Queda de Murdock. De secretária bem comportada, ela foi embora pra Los Angeles para tentar ser atriz, caiu no mundo pornô, se viciou em heroína, trocou a identidade secreta do herói por uma dose a mais e foi morta pelo Mercenário logo após dizer ao Homem Sem Medo que ela era soropositiva.

Demolidor
Demolidor e Karen Page durante a desgraça (Imagem: Marvel Comics)

Tudo bem que relacionamentos em crise são uma constante nos quadrinhos, mas poucos conseguem ser tão miseráveis quanto ele. É uma constante de chorume tão grande que a identificação é inevitável. Por mais que nenhum de nós tenha namorado alguém que veio de uma ordem milenar de assassinos ou mesmo com o nome ridículo de Mary Typhoid, o drama de novela vivido pelo Demolidor ao longo dos anos é o tipo de coisa que todo mundo já enfrentou. No fundo, somos todos uns fodidos como ele.

I know that feel bro

Demolidor
(Imagem: Marvel Comics)

No fim das contas, o que torna o Demolidor um dos heróis mais bacanas é exatamente essa proximidade que ele tem não somente com o nosso mundo, mas com nós mesmos. De nada adianta recriar um universo parecido com o nosso se o seu protagonista não consegue criar esse vínculo. E, enquanto o Homem-Aranha representa essa esperança de que as coisas podem ficar boas, o Homem Sem Medo vem no sentido oposto para mostrar que não importa quem você seja, merdas acontecem o tempo todo.

E é exatamente essa capacidade de se levantar diante de tanta derrota que faz com que o herói tenha tantas história bacanas. Só que isso não acontece porque ele tem poderes ou habilidades sobre-humanas. Em todos os momentos, ele teve de aprender a lidar com a perda, com a frustração e o fracasso como uma pessoa normal — como acontece com qualquer um de nós. E é exatamente isso que torna o Demolidor tão legal.

Um herói não é a pessoa que veste a máscara, mas o que aquele uniforme significa. Assim, todos nós somos um pouco de Demolidor.