Sobre as mudanças de personagens da Marvel

Por Felipe Gugelmin

Não é preciso acompanhar de perto os quadrinhos da Marvel (basta não viver em uma caverna) para saber que a editora decidiu agir de maneira “polêmica” nas últimas semanas. Além de anunciar que o novo Thor é uma mulher, a empresa avisou que o Falcão vai assumir o manto do Capitão América durante uns tempos — isso é, um negro vai vestir o uniforme.

Diante disso, eu pergunto: e daí? Não no sentido de “to nem me importando com os caras, nem acompanho as histórias”, mas sim no sentido de “por que diabos vocês estão considerando isso algo polêmico ou ruim?’. Navegando por esses poço de chorume que são as redes sociais, é difícil não encontrar alguma reação negativa à essa notícia, que usam justificativas que vão desde do “mas eles não foram criados assim” até o “ain, mas vai perder a essência do personagem”.

Ao primeiro grupo, eu respondo: nenhum dos personagens que você acompanha hoje em dia nasceram da maneira como são conhecidos atualmente. Tal qual o cinema, a música e outros meios de entretenimento, os quadrinhos são uma produção cultural que é muito associada ao ambiente social e cultural no qual é produzido — ou seja, é necessário que seus personagens se transformem de forma a acompanhar a passagem do tempo, caso contrário eles morrem ou se tornam motivo de piada.

Afinal, qual é dessa tal “essência”?

Isso nos leva ao segundo ponto: afinal, qual a essência de um personagem de quadrinho? Você lembra mais do Superman por que ele é um cara que veste a cueca ou porque ele é superpoderoso e invulnerável mas, apesar disso, usa seus poderes para proteger as pessoas mais fracas e preservar a paz? (esqueçamos a vergonha assassina dos Novos 52 por um momento, por favor).

Para citar outro exemplo de “personagem e sua essência”, vamos lembrarmo-nos (olha que palavra bonita) da “polêmica” que envolveu o Wolverine gay — que pertencia a uma dimensão paralela e nada influenciava no personagem canônico. E se influenciasse, não haveria o menor problema — afinal, mesmo gay, essa versão alternativa possuía todos os elementos que tornavam Logan o Wolverine.

wolverine

Na época, muita gente falou que “era um absurdo” a Marvel fazer isso, e que isso destruía a essência do carcaju — que, ao meu ver, sempre esteve muito mais relacionada ao cara que “joga sujo” para vencer e é “o melhor no que faz” do que ao galã pegador que tá lá só “para pegar toda a mulherada” (faceta recente do herói que destruiu muito de sua “essência original” e que só surgiu graças à Era Jim Lee, diga-se de passagem).

Também podemos falar sobre a “mudança absurda” que a Fox propôs ao considerar que o Tocha-Humana poderia ser interpretado por um ator negro. Claro, naturalmente, as críticas se baseavam mais no fato do “mas não era assim”, deixando de lado que o que constituía o herói era sua atitude impulsiva e seus incríveis poderes, e não qual a cor de sua pele — tampouco sua relação com sua irmã, Sue Richards.

Para de ser chato e espera para ver

O ponto que quero chegar é: se você está reclamando das mudanças propostas pela Marvel no momento, sem que a empresa sequer tenha lançado o material estrelado pelas novas versões de seus heróis, você é um babaca. Sério: por mais que você tenha mil e uma razões, dizer que não gostou simplesmente porque não é aquilo que você conhece o torna uma pessoa (desconfio) ligeiramente preconceituosa e, porque não, infantil.

Thor 2Em um universo que parece constituído por uma “eterna busca ao status quo”, mexer com personagens estabelecidos é importante tanto para o leitor quanto para a indústria em geral. Não fossem essas decisões de “quebrar a essência dos heróis”, ainda teríamos que lidar com um Superman que não voa, com um Quarteto Fantástico estilo “família dos anos 50” e com um Ciclope ainda mais bundão e que sequer teria os méritos de ter dado uns pegas na Emma Frost.

“Ai, mas poderiam ter feito isso com algum personagem mais desconhecido ou com alguém novo”. Claro, poderiam. Mas, assim como histórias geniais feitas com figuras secundárias são ignoradas, o “público hardcore”de quadrinhos faria questão de relegar essas figuras a um segundo plano — como já faz com muitas criações anteriores que tentaram realizar alguma espécie de mudança, seja ela meramente editorial ou com o intuito de provocar algum impacto cultural.

O fato de essas mudanças anunciadas pelo estúdio terem sido encaradas como uma polêmica só prova duas coisas: que uma boa “mexida no status quo” vende (ou ao menos chama a atenção) e que o público em geral ainda tem muito a crescer em matéria de aceitação de diferenças. Afinal, se em 2014 ainda tem gente que ache “absurdo” mulheres e negros terem um papel de destaque em qualquer lugar que seja, é porque ainda temos muito a avançar como seres humanos.

Felipe Gugelmin

Aqui para falar que Bird is the word.

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