Em 2021, eu só desejo uma coisa: menos hype, por favor

A expectativa é a mãe da merda, diriam alguns. Só que, nesse mundinho de cultura pop que a gente gosta tanto, parece que a sabedoria popular não tem muita força. A expectativa não é só encorajada como alimentada e glamourizada. E, se eu pudesse desejar uma única coisa para este novo ano que começa, seria justamente o fim da bendita cultura do hype. Além da vacina, obviamente.

A atrocidade que foi 2020 mostrou o quanto somos viciados na tal da expectativa. Viciados ao ponto de acompanharmos uma apresentação da Disney para investidores com a paixão de uma final de campeonato. Teve até quem celebrou uma série-que-era-filme do Zack Snyder — um claro sinal de que tudo está perdido mesmo.

Ao mesmo tempo, esse ano bizarro também mostrou como a cultura do hype é esse monstro que alimentamos e que pode muito bem sair do controle a ponto de nos devorar. Cyberpunk 2077 foi o exemplo mais claro disso. Ele fez com que todo mundo embarcasse nesse trem cheio de promessas e expectativas para descarrilar em um lançamento problemático e espalhando decepção para todos os lados. Mas que lições a gente pode tirar disso?

Alguém pare o trem do hype que todo mundo precisa descer

O hype como produto

Todo esse hype em que a gente adora embarcar é algo milimetricamente pensado. Equipes de marketing estão a todo momento calculando a melhor forma de anunciar algo, seja no impacto de um trailer ao modo como uma simples imagem vai virar assunto no Twitter. E a gente sabe disso.

Duvido de verdade que alguém seja ingênuo para acreditar que tudo isso é espontâneo. É o velho “me engana que eu gosto” e todo mundo concorda e se diverte participando — e não há nenhum problema nisso.

Enquanto ver o filme ou jogar o joguinho é quase sempre uma experiência individual, embarcar no hype e discutir algo que nem existe é algo coletivo que cria um senso de pertencimento e participação. O problema começa quando a expectativa se torna o centro da coisa toda e a ser mais importante do que o produto em questão. Nesse caso, o hype se torna o produto em si.

Isso é bem fácil de ver em jogos. As empresas já deixaram claro que o ciclo de vida de um game não é mais quando ele chega às lojas. Na verdade, esse é o exato momento em que ele se encerra. Para as publishers, o produto mesmo que está sendo vendido é o hype que vai empolgar a galera, impulsionar pré-vendas e catapultar o valor de ações. A chegada do jogo às lojas pouco importa, já que há outro lançamento sendo muito hypado já na sequência.

Em 2020, Cyberpunk 2077 foi o grande centro desse movimento, mas não foi o único. Antes dele, uma cacetada de outros jogos muito aguardados pipocou por aí e, apesar de toda a expectativa envolvida, todos foram engolidos por esse ciclo sem o menor pudor.

20 anos de espera para ser deixado de lado em três meses

Final Fantasy VII Remake, por exemplo, chegou no comecinho do ano como o jogo que ninguém acreditava que seria lançado; o remake da vida de muita gente. O hype, as especulações e discussões sobre mudanças e melhorias eram algo que se ouvia desde que ele foi anunciado, em 2015. Mas bastou ser lançado para que imediatamente deixasse de ser interessante e todo o foco fosse para The Last of Us – Parte II. E a empolgação com ele durou pouco, já que ele logo foi devorado por Ghost of Tsushima já na sequência.

Esse movimento mostra bem como a tal da cultura do hype funciona: não se trata do jogo em si, mas de esperá-lo. Quando o jogo é lançado, ele não é mais uma ideia. Ele existe e pode ser bom ou não, ponto. Não existe mais margem para você especular, imaginar ou discutir o que pode ou não pode ser. E é nesse espaço que o próximo hype vai entrar.

Ninguém parou pra pensar nos problemas de Ghost of Tsushima porque estavam mais interessados no próximo hype

Como falei antes, a expectativa é uma experiência coletiva em que você discute e especula um jogo que é apenas potencial — e, na sua cabeça, ele pode ser tudo. E é por ser essa ideia que ela se torna perfeita, praticamente inalcançável. Nesse caso, o hype pelo próximo jogo torna-se incrivelmente sedutor, afinal é a promessa de que o próximo lançamento pode ser aquilo que você imagina. E assim vai.

Não quero dizer com isso, porém, que se trata de uma expectativa que nunca vai ser alcançada. O ponto é que o resultado final pouco importa. É o hype que realmente conta: se o resultado for ruim, você fica na expectativa pelo próximo que promete ser muito melhor. Se for bom, você quer mais daquela experiência e as empresas estão logo ali na frente prontas para te dar mais uma dose desse hype. No fim das contas, é algo tão viciante quanto uma droga que você sempre vai querer mais.

O efeito Marvel

Somos tão reféns do hype que nos empolgamos com um evento chamado Investor Day

Nesse ponto, a Marvel sabe muito bem como dar essas doses para manter seu público em um constante estado de euforia pelo que está por vir.

Quando ela anuncia um novo filme, o hype é imediato e é todo centrado em como as coisas vão se conectar. Basta rodar o YouTube para você ver quantos vídeos surgem logo na sequência com teorias e suposições de como as coisas vão se encaixar para o futuro desse universo. E quando o filme chega ao cinema, há o mesmo movimento de deixá-lo de lado para olhar para o próximo.

E esse é um dos grandes segredos do MCU: se trata muito menos dos filmes em si, mas de como eles vão levar para o próximo. Duvido que alguém tenha visto Homem-Formiga e Vespa por achar esses personagens realmente bons. Todo mundo foi (inclusive eu) porque esse era um filme que prometia entregar peças-chaves para o futuro dos Vingadores. E quando Guerra Infinita acabou, as atenções imediatamente se voltaram para Capitã Marvel.

O problema por trás do hype

Apesar de eu estar cagando uma regra bonita, não estou dizendo que essa expectativa constante é errada. É divertido acompanhar e entrar nesse ciclo de especulações. O problema está quando toda a experiência se resume apenas a esperar.

Perdoem a analogia barata, mas é como se a gente embarcasse nesse trem do hype pelo simples fato de embarcar. Quando o hype se torna o produto que importa, a gente está saltando de trem em trem sem chegar a lugar nenhum de fato. E aí começa o problema de verdade.

A grande questão por trás desse eterno aguardar é que a euforia da expectativa acaba funcionando quase como uma cortina de fumaça que desvia sua atenção do jogo/filme para a empolgação logo à frente. Nesse caso, a gente deixa de perceber defeitos e qualidades de uma determinada obra porque já estamos esperando pela próxima dose.

O que tornou o desastre de Cyberpunk 2077 enorme não foi apenas o fato de ele ter alimentado um monstro que o devorou. Foi ter feito com que esse monstro afugentasse possíveis cortinas de fumaça que diminuíssem a exposição de seus problemas.

Uma das principais críticas que o jogo da CDPR recebeu, além dos bugs e gráficos zoados nos PS4/Xbox One, foi de como seu mundo era vazio e como a narrativa dialogava pouco com a jogabilidade. E todos esses apontamentos são reais, mas não exclusivos dele. O próprio Ghost of Tsushima sofre do mesmo mal, por exemplo, com um mundo aberto enorme em que nada acontece e uma historinha bem mequetrefe. Então por que ninguém falou sobre isso quando ele chegou?

Quando o foco do consumo é transferido para a expectativa, o jogar/assistir não é mais tão interessante e serve apenas para validar a imagem que foi construída antes. No caso de Ghost of Tsushima, o hype foi alimentado pela ideia de como ele era um jogo lindo e com ótimas lutas de espada. E quando pegamos o jogo em mãos, foi para comprovar o que o marketing nos vendeu. Não havia espaço para pensarmos todos os problemas que existiam ali. Isso porque estávamos mais interessados em hypar o próximo grande lançamento do que pensar sobre aquilo que está à nossa frente.

Com Cyberpunk 2077, a falta de um grande jogo pra hypar num horizonte próximo devolveu a capacidade de perceber a sua falta de substância. Sem nada para satisfazer a insaciável fome da indústria por novidades, Cyberpunk foi devorado pela frustração.

Um mídia emocionada

A grande questão dessa cultura do hype é que ela não nos dá tempo para absorver e analisar o que estamos consumindo. E é aí que deveria entrar um mediador, alguém que puxe a atenção do público daquilo que as empresas querem que você veja para aquilo que é importante ser visto e dito. Em tese, esse seria o papel da imprensa, da mídia especializada, que equilibraria essa balança aprofundando a questão para além da expectativa em si. Só que não é isso o que a gente encontra.

Seja na cobertura de jogos quanto na de cinema, a gente encontra muito mais um pessoal emocionado do que realmente disposto a pensar o que está sendo consumido. Falo isso como um mea culpa mesmo, como parte do problema.

É muito mais sedutor escrever sobre coisas que você sabe que vai empolgar o teu público. É mais interessante atrair o clique do que ser o cara da opinião impopular ou que vai querer discutir sobre algo que não está mais no centro das atenções. Por que vou falar dos problemas de Ghost of Tsushima quando todas as atenções estão voltadas para o novo trailer de Cyberpunk? Aquele texto sobre os problemas de Capitã Marvel vai ser completamente ignorado porque está todo mundo querendo ver os easter eggs e as teorias sobre como ele vai levar para a Fase 4 da Marvel.

Essa é uma questão editorial que diz respeito apenas aos produtores de conteúdo, mas que afeta a percepção do público. Quando quem deveria equilibrar a balança também se entrega a esse ciclo, a gente tem monstros cada vez maiores e difíceis de administrar.

É o caso de Cyberpunk 2077. Quando eu digo que foram meses alimentando o hype e preparando o acidente de trem que a gente viu com o lançamento, foram meses em que a imprensa esteve reforçando o discurso que o estúdio estava vendendo. O questionamento sobre o desempenho e a experiência limitada não veio nem mesmo quando tiveram o primeiro contato com o jogo.

Algo muito parecido aconteceu com The Order: 1886, lançado pra PlayStation 4 lá em 2015. Todo o marketing do jogo foi sobre o visual ultrarrealista e a ambientação steampunk. Mas absolutamente ninguém da imprensa se questionou sobre a falta de demonstrações de gameplay mais detalhadas. Resultado: o público embarcou no trem do hype que a imprensa reforçou e todo mundo saiu decepcionado com um jogo mais raso que um tweet presidencial. Só que pouco se refletiu sobre o assunto, já que Bloodborne já aparecia logo no horizonte e desviou a atenção sobre o debate.

A mídia deve ser formadora de opinião, mas a cultura do hype subverte isso. Ela faz com que sites e canais de YouTube se tornem pontos de encontro de pessoas empolgadas querendo participar dessa experiência coletiva e pouco interessadas em discutir o produto em si. Do lado do público, tudo bem, mas é isso mesmo o que a gente espera de quem diz que está ali para informar?

Por isso, além da vacina e da saída do maluco da arminha, o que eu desejo mesmo para 2021 é que a gente seja menos levado por esse hype todo. Eu sei que é divertido se empolgar com algo e ficar na expectativa, mas o hype pelo hype acaba criando uma bolha que a gente acabou de ver estourar e que certamente vai voltar a se encher em breve. E sabe-se lá qual vai ser o tamanho do próximo estrago.