Balconistas e Kevin Smith

Hoje em dia, quando se fala de Kevin Smith, logo vem à mente a ideia de filmes ruins, com piadinhas de pinto e maconha. Apesar de alguns bons trabalhos como diretor de episódios das séries do Flash e Supergirl, ele ainda é o cara que fez Red State e Yoga Hosers (meu Deus, que filme ruim).

Mesmo tendo Procura-se Amy como possivelmente o seu melhor filme, são os dois longas sobre balconistas que realmente mostram que o Smith consegue contar uma história sobre a dificuldade de se encontrar na vida. Isso claro, se você ignorar todas as piadas cretinas.

Eu nem deveria estar aqui hoje!

O Balconista foi o primeiro filme do Kevin Smith e o colocou no mesmo balaio de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, ainda lá em 1994, quando eles trabalhavam com a Miramax e serviram como novos expoentes do cinema independente.

O filme era todo em preto e branco e, se você olhar de relance, é sobre absolutamente nada. Temos Dante, um balconista de um mercadinho furreca que é chamado pra cobrir a falta de alguém. Ao longo do filme, vemos o dia do sujeito no mercadinho, basicamente conversando com a sua namorada e seu melhor amigo, Randal, o balconista de uma locadora logo ao lado.

O longa não traz atuações incríveis e tem nos seus diálogos o seu grande trunfo, com talvez a melhor reação pra um “Minha namorada chupou 37 paus”.

Só que por baixo das conversas sobre a construção da Estrela da Morte ou visitas em velórios com direito a caixão tombando, O Balconista trata de algo que nunca vejo muita gente comentando, que é a total inércia de uma geração.

Parece que eu tô forçando a amizade aqui, mas acompanhe.  Os personagens de O Balconista estão no começo dos seus 20 anos, com a vida inteira pela frente. Por isso, não se preocupam tanto com empregos sem futuro, deixando as coisas acontecer sem muito rumo, pois sempre existe aquela coisa de “eu sou assim, uma hora as coisas se acertam”.

A primeira vez que eu vi O Balconista, devia ter uns 15 anos e vou ser sincero que achei bem qualquer coisa. Um filme em preto e branco sobre porra nenhuma não tinha muito como me atingir mesmo. Um dia, já com 22 anos, assisti novamente e aí bateu. Bateu provavelmente pelo fato de eu ter a mesma idade dos personagens (ou próximo disso) e estar em uma situação parecida. Eu tinha um emprego sem muito futuro, tava ganhando o meu dinheiro, mas fazendo nada que de fato pudesse me dar um futuro. Eu queria mais pra minha vida, mas tava ali, inerte e sem direção.

Assistir O Balconista me deu uma sensação de que eu precisava fazer algo. Durante muito tempo, eu queria fazer cinema. O Balconista me empolgou bastante pra isso, porque aquela porra é relativamente fácil, já que são só pessoas falando em um cenário. Eu cheguei a escrever um roteiro (que provavelmente nunca verá a luz do dia) num surto de empolgação. E aí continuei do mesmo jeito.

“Não tem ninguém pra fazer isso.” “Onde que eu vou conseguir produzir esse negócio aqui?”. E o tempo passou. Com 22 anos eu tava escrevendo na internet sobre bobices. Eu tinha certa esperança de que isso acabasse evoluindo pra algo diferente, algo maior. Assim como Dante e o Randal em empregos que não faziam tanta diferença, eu conseguia me identificar com aquela realidade. E esse talvez fosse a grande promessa daquele Kevin Smith em começo de carreira.

Alguém que conseguia colocar alma em personagens cretinos em situações mundanas e de fácil identificação. Talvez por isso, o resto da carreira do sujeito seja tão criticado, mesmo que boa parte dos seus melhores filmes tenham essa característica (mesmo eu achando Mallrats sensacional por motivos de Brodie, cara).

Misery loves company

Doze anos após o lançamento de O Balconista, o Kevin Smith lançou sua sequência, O Balconista 2. Depois de meia dúzia de filmes dentro do mesmo universo (e outro fora), o diretor retornou aos personagens que deram início à sua carreira no cinema. E o mais impressionante é que, em vez de mostrar que os personagens aprenderam com aquilo pelo que passaram no primeiro filme, ou sequer com uma vida depois de dez anos, encontramos Dante e Randal EXATAMENTE do mesmo jeito que eram no começo de tudo.

Mesmo com a mudança no cenário, os personagens continuavam basicamente os mesmos, com as mesmas conversas e, aparentemente, os mesmo dilemas de quando tinham seus 20 e poucos anos de idade. Apesar de O Balconista 2 ter sido bem mais esculachado por crítica (e parte do público) por ser um amontoado de piadas de peito, peido e toda aquela folia, assim como o primeiro filme, ele guarda por baixo uma história sobre amadurecimento (na marra), relacionamentos e como descobrir o seu lugar no mundo.

Sim, parece uma forçada de amizade imensa falar que um filme que tem um show de bestialidade (ou “Interspecies Erotica”) possa tratar desses temas com a sensibilidade necessária mas, de um jeito bizarro, O Balconista 2 consegue.

De um lado, Dante, alguém que nunca teve controle sobre a sua própria vida, fazendo aquilo que sempre lhe foi imposto, desde sua infância de total inércia (“Minha mãe disse que eu caguei nas calças porque não queria levantar a tampa da privada”) até um casamento e viagem pra outro estado, abandonando tudo porque é “a coisa certa a se fazer”, mesmo existindo opções melhores para ele viver a própria vida.

Do outro lado, Randal, uma pessoa que já aceitou o seu papel no mundo, mesmo ele sendo pouco glamouroso (nem um pouco, na verdade), mas que tem em seu relacionamento de amizade com Dante o pilar pra sua existência. Enquanto aquilo está de pé, todo o resto se sustenta. Até que ele começa a bambear.

O Balconista 2 mostra, de um jeito tonto, como algumas pessoas muitas vezes aceitam situações em sua vida pelo simples fato de serem o esperado de alguém, ignorando suas vontades. E como outras aceitam algo simples, mas que vale a pena quando feito com alguém com quem você se importa. E como, no final de tudo, você deve encontrar aquilo que te faz feliz, aquilo que parece certo pra você e seguir nesse caminho. Ninguém vive a sua vida.

Com um filme que conta com um diálogo sobre como Transformers são uma maldição criada pelo Costa Oca, o Kevin Smith tocou, talvez sem querer, em situações bastante humanas e reais, como pouca gente conseguiu fazer sem parecer forçado. E isso era uma marca do Kevin Smith, pelo menos até Zack and Miri Make a Porno.

Sim, todos os filmes do cara eram um amontado de piadinhas cretinas, mas todos traziam uma boa dose de “coração” que tornavam as histórias bem mais aceitáveis. Interessante que quando ele começou a deixar isso de lado de verdade, desandou feio e aí cometeu umas atrocidades, tipo o já citado Yoga Hosers.

Conversas sobre um terceiro Balconista (e até mesmo um novo Mallrats) surgiram no ano passado, mas foram pro saco porque os verdadeiros detentores dos direitos não quiseram seguir em frente com a ideia. E também não precisa. Com O Balconista 2, querendo ou não, o Kevin Smith trouxe o melhor final possível para Dante e Randal. Nem todo mundo vai viver uma vida cheia de emoção. Alguns estão satisfeitos com um mercadinho, família e amigos.